segunda-feira, 22 de agosto de 2011

sobre o acordar

existem sonhos que fazem jus ao nome. são aqueles nos quais você consegue tudo o que sempre quis. quando percebe, foi promovido; comprou seu primeiro apartamento; falou mais uma vez com o avô, há muito falecido; ficou, finalmente, com a garota. sonhos que, mais cedo ou mais tarde, mostram ser o que são por serem bons demais. mesmo assim, você se apega a eles, estabelecendo o acordo não oficial de fingir que não sabe ser sonho, e ele fingindo que não sabe que você sabe. continuam todos, assim, felizes em sua ignorância.

no entanto, a vida é geniosa e não suporta ser trocada assim tão fácil por algo que nem existe fora de nossas cabeças, jogando algo para nos tirar daquele estado inconsciente. em algumas vezes o despertador toca, em outras, sua mãe bate à porta e avisa que é hora de levantar. você, claro, não desiste assim tão fácil. enfia a cabeça debaixo do travesseiro, puxa as cobertas e tenta, apertando os olhos de tal maneira que eles poderiam jamais abrir novamente de tão forte, voltar àquela realidade irreal. mesmo sabendo que na maioria das vezes ela não volta. situações estas que se repetem tantas vezes ao longo de nossa existência que acabamos nos acostumando.

contudo, se tivermos sorte, em algum momento chegamos a conhecer o aconchego de um sonho neste mundo aqui de fora, vivendo todos os dias em um estado aparentemente perpétuo de plenitude, podendo até mesmo fazer pouco de tamanha graça. nestas horas, ignoramos que este é um universo paralelo cujo fim já estava estabelecido em seu começo. e assim dá-se continuidade àquele acordo, ninguém me belisque pra saber se é verdade.

como todo sonho, no entanto, o amanhecer não tarda a chegar e a vida, invejosa, tem pressa de continuar. você pode lutar, pode se debater e enfiar a cabeça debaixo do travesseiro, tentando voltar àquela irrealidade arredia. mais cedo ou mais tarde, não importando o que faça, acaba por se aceitar o inevitável. resta, então, apenas deixá-la partir, como tantas outras antes. mesmo sabendo que, dessa vez, toda vez em que se deitar, rezará calado para que ela volte.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

sobre as pessoas ao meu lado

curiosamente, ali estavam apenas o médico, um homem com seus 30 e poucos anos, cabelos castanhos cheios e olhar gentil que lhe dava um ar respeitável, e a enfermeira, já uma senhora que claramente havia visto suas dezenas de primaveras e que usava um suave suéter cor de rosa por baixo do avental creme do hospital. ela perguntou se havia alguma coisa que podia fazer por mim. perguntei-lhe se ela tinha uma caneta e papel.

cerca de quinze minutos antes, o doutor havia me informado que minha condição era crítica e que, assim que possível, eu deveria passar por uma cirurgia para tentar remover o coágulo que pressionava meu cérebro contra o crânio causando, sem meu conhecimento, a enxaqueca que já durava dias. a notícia não havia sido processada apropriadamente ainda, apenas o suficiente para que tudo o que eu conseguisse pensar era em escrever. eu ainda não sabia exatamente o que, mas me parecia uma obrigação deixar registrado meus últimos pensamentos caso, você sabe, eu não tivesse êxito.

estava sozinho numa cafeteria a poucos quarteirões da minha casa quando desmaiei, vítima de um episódio súbito e mais violento do que aqueles que vinham acontecendo. talvez por isso me encontrava sem alguém conhecido naquele quarto de hospital. acho que, por estar tão só naquele que provavelmente seria o momento mais importante da minha vida, só conseguia me concentrar naqueles que eu gostaria que estivessem comigo.

seguindo essa linha de raciocínio entrei em uma área obscura que provavelmente deveria ter evitado. nestes meus 47 anos, quantas pessoas pensariam em mim caso se encontrassem na mesma situação? quantas vidas eu havia realmente marcado a esse ponto, de fazer a diferença na hora de um fim iminente?

***

acordei três dias depois e haviam duas pessoas ao meu lado, meu irmão e pedro, meu melhor amigo desde a adolescência. talvez a única coisa que supere minha felicidade ao perceber que ainda estava vivo seja a alegria presente nos olhos dos dois. um sentimento contido, reservado, de quem não quer que você perceba o quão perto da morte esteve. os dois haviam lido meu bilhete, minhas ex-últimas palavras, e me asseguraram que haviam entregue o recado à terceira pessoa, a mulher da qual eu tinha me divorciado anos antes. ela passara para checar meu estado um dia antes, mas tinha de viajar para fora do estado a trabalho, torcendo pela minha recuperação.

jamais entenderei por que, naquele momento, resolvi que devia buscar esclarecimento com ela. pedro e meu irmão, claro, ambos ainda eram as pessoas mais presentes em minha vida, mas ela? trocávamos e-mails vagos e superficiais a cada dois meses, mais ou menos, apenas para não nos tornarmos estranhos. pelo jeito, havia algo dentro de mim que ainda não a havia esquecido com o assinar dos documentos do divórcio.

conversamos distraidamente por algumas horas os três, sempre evitando o elefante no quarto que havia sido minha quase morte. dias depois descobri que havia ficado em coma durante dois dias, acordando brevemente no terceiro, fato que não me recordo. o almoço chegou acompanhado do doutor, que disse ao dois que eu precisava descansar. pedro, sempre reservado, acenou da porta e disse que voltava no dia seguinte, caso eu não resolvesse ter outra dorzinha de cabeça. meu irmão ainda tentou em vão conter o abraço apertado que quase me arrancou a gaze. com lágrimas nos olhos (tanto nos dele, quanto nos meus) me fez jurar que jamais armaria outra palhaçada daquelas. pouco antes de atravessar a porta, se lembrou. ela havia deixado uma resposta. entregou o papel amassado que havia passado as últimas 24 horas em seu bolso, me beijou a testa e saiu.

depois de almoçar a comida surpreendentemente saborosa, não apenas por se tratar de ser um hospital, mas porque eu também não sentia o gosto das coisas há algumas semanas, ainda assisti um pouco de televisão, agradeci à boa e velha enfermeira por ter entregue meu recado e enrolei mais um pouco até ter coragem de ler o que minha ex-mulher havia respondido. sucinta como lhe era característica, a resposta era constituída por apenas uma palavra. "sim".

e você? já marcou de verdade a vida de alguém? às vezes não vale a pena esperar momentos como este para descobrir.


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levemente inspirado neste belo texto: http://bit.ly/r3FIvd

domingo, 17 de julho de 2011

sobre viagens de negócios

poligamia é uma daquelas coisas cujo próprio ato já deveria ser considerado punição suficiente. joão moura, popularmente conhecido como jomo, discordou durante anos desta afirmação. aos 23 anos, se casou com maria cláudia, sua primeira namorada, quando esta engravidou. ao contrário do que se pode imaginar em se tratando de um casamento motivado pela gestação, foram muito felizes por sete anos, com mais dois filhos pelo caminho, até que a chama pareceu se apagar. passou a chegar sempre cansado do trabalho, maria cláudia estava sempre com dores de cabeça, foi praticamente um milagre que didi, o terceiro filho do casal, pudesse ter sido gerado.

um dia, no entanto, tudo mudou radicalmente. jomo voltou de uma viagem de trabalhos carregado de presentes para todos. um video game para o primogênito, um carro de controle remoto para o filho do meio, três macacões do santos para didi e uma noite quente para maria cláudia, começando com as crianças com a babá, um jantar romântico em seu restaurante favorito e a superação de qualquer enxaqueca na cama - por quatro horas seguidas. ela não podia acreditar na súbita mudança de humor do marido, e nem estar tão feliz que nem reparou que suas viagens de negócios passaram a se tornar cada mais constantes e longas. afinal, jomo voltava sempre tão amoroso e dedicado que valia a pena as duas semanas por mês que ele tinha que passar longe de casa por causa de sem emprego como representante de vendas de uma fábrica de ligas metálicas. mal sabia ela que, em ribeirão preto, joão moura tinha outra mulher.

tudo havia começado como uma mera relação profissional. maria cristina trabalhava como secretária de um dos clientes de jomo e atraiu sua atenção durante um dos almoços de discussão de preços. era uns bons oito anos mais nova que sua patroa, bonita, ambiciosa e admirava aquele homem que vinha mensalmente conversar com seu patrão. saíram para jantar um dia e só deixaram o quarto dois dias depois, quando joão tinha que voltar pra casa. um ano depois, uma cerimônia pequena reunindo apenas os amigos mais chegados, no cartório mesmo, oficializava a união entre maria cristina rondón e joão de carvalho moura (de carvalho era o sobrenome de solteira da mãe de joão), que passou a ser conhecido nos círculos de conhecidos do casal como "joca", ironicamente.

enfim, durante uns bons três anos, a vida não poderia ser melhor para jomo/joca. conseguia levar bem sua vida dupla, afinal seu emprego realmente o forçava a viver nessa "ponte aérea" santos-ribeirão preto. sempre que chegava em casa, era recebido por amores e saudades, e ainda conseguia ir embora no exato momento em que começavam os atritos da convivência. vivia, então, como um convidado em seu próprio lar, onde fosse, e era tratado com toda a pompa por suas esposas. a vida não podia ser melhor para joão moura.

até o dia em que ele reparou que as coisas não eram mais como antes. suas mulheres, não imporando onde estivessem, se comportavam de forma irracional, temperamental, ditatorial e selvagem. conseguia fugir de uma, às vezes, sob desculpas de uma viagem imprevista e urgente, apenas para ser recepcionado por patadas, unhadas e lágrimas. jomo/joca havia conseguido, por anos a fio, intercalar o fenômeno da TPM de suas mulheres, de forma que nunca estivesse na respectiva casa quando o incidente começasse. por uma dessas ironias da natureza, o ciclo de suas mulheres, mesmo a a 430 quilômetros de distância, haviam se alinhado. agora ele não tinha de encarar apenas UMA mulher chorando, agredindo, xingando e esbravejando, mas um ataque conjunto e coordenado. isso, pois mesmo que estivesse longe, enfrentando a artilharia de uma, recebia os ataques da outra por celular, e-mail ou sms.

o pobre joão moura não sabia mais o que fazer. estava prestes a se entregar à mercê de ambas as fúrias e pedir por perdão, rezando para que a morte fosse rápida e indolor. nesse momento de fraqueza suprema, quando nenhuma conclusão parecia se aproximar e os ciclos não davam indicação de que se desligariam em um futuro próximo, jomo/joca conheceu sua resposta. joão moura, casado há dez anos com maria cláudia e há três com maria cristina, surpreendeu a si mesmo ao perceber que não teria outra solução - casou-se pela terceira vez.

segunda-feira, 21 de março de 2011

sobre a derrota do amor cinematográfico

acabo de voltar da mais malfadada tentativa cinematográfica de conquista de que se tem notícia. quando digo cinematográfica, não quero dizer daquele tipo kate winslet nua com apenas uma jóia no pescoço enquanto leonardo dicaprio traça seu retrato com carvão. quero dizer aquela tentativa na qual você chama a pequena praquele filminho seguido de jantar. uma aproximação clássica, aliás. "qual a película?", ela pergunta. "qualquer um, oras", você responde. se ela aceitar, é meio caminho andado.

existe algo nas salas de cinema que as tornaram ideais para essas situações, esses primeiros encontros, ficadas, amassos, trocações de saliva. o primeiro fator é que evita a presunção que é assumir, logo assim de cara, que ambos realmente estão interessados um no outro. pode ser apenas que os dois realmente curtam muito o cinema experimental iraniano, vai saber. o segundo é o escuro que oferece uma privacidade psicológica considerável (isso porque, convenhamos, em uma sala lotada todo mundo sabe o que você, com a guria ao lado e olhar ansioso, foi fazer ali). o terceiro, e mais determinante, são aqueles breves segundos de silêncio enquanto aparecem os créditos das produtoras e distribuidoras, quando a luz da tela é suficiente para que você olhe para o lado e, com um olhar, determine se o bote será infalível.

infelizmente os tempos já não são mais os mesmos e os percalços cada vez maiores. quase não se encontra mais aquelas salas de rua com aqueles carrinhos de pipoca em frente, aqueles filmes chatérrimos europeus que te obrigam, durante a sessão, a achar algo melhor para fazer. não, hoje você é obrigado a se dirigir a um shopping abarrotado de gente, com crianças correndo pelos corredores pedindo por mais balas, chocolates ou manteiga, acompanhadas de seus pais com profundas olheiras e esperando que o filme seja movimentado o suficiente para permitir uma soneca. não me entenda mal, não tenho tantos problemas assim em assistir a um longa hollywoodiano cheio de explosões e efeitos especiais nesses lugares. nada contra, mas vale lembrar que a última das intenções, neste caso debatido agora, é realmente acompanhar qualquer enredo. por fim, o desafio final. qual seria a hora exata em que você levanta o braço entre as duas cadeiras e deixa claro, finalmente, que dali ela não sairá ilesa?

apesar de tudo isso, ainda me mantenho um fiel amante cinematográfico. talvez não consiga largar destes velhos hábitos, e devo dizer que eles me têm sido de grande valia até os dias de hoje. uma velha rotina que apresenta números ridicularmente pequenos de falha, alguns de execução, outros de alvo. por estes motivos que persisto, e eis que, há dois dias atrás, o convite para um filme qualquer foi aceitado.

nos encontramos na praça de alimentação e fomos diretamente à fila do cinema, onde decidiríamos qual o filme com menor probabilidade de lotação e atração de pessoas abaixo de 14 anos. os 20 minutos habituais de conversa jogada fora, comentando os principais acontecimentos da atualidade, foram cumpridos com perfeição. logo os trailers já haviam terminado, e eu colocava uma pastilha de menta na boca, daquelas compradas com um único objetivo. nessa hora, abortar a missão era algo impensável. estiquei o braço por trás de seus ombros como quem não quer nada, o movimento mais antigo do manual, e ela havia aceitado sem protesto. com a luz diminuta da tela, me virei lentamente para encará-la e... desabei a rir. aqueles óculos, aqueles malditos óculos!

erro crasso, de amador. nunca haveria de imaginar o poder que a cara abobada formada por aqueles infelizes óculos 3-D teriam sobre mim. não pude me conter. ela encarava a tela de forma um tanto apaixonada, ansiosa, esperando meu próximo ato, e tudo que consegui fazer foi desatinar a rir sem controle, quase cuspindo a bala em sua cara e rezando a deus que nenhum perdigoto tivesse atingido-lhe a face.

assistimos o filme até o fim. 134 minutos de tortura interminável até que eu pudesse sair correndo dali. no final, ao deixá-la em casa, ela ainda tentou fazer piada. "esquisitos aqueles óculos, né? você até que não ficou tão bobo com eles...". eu só pensava em dar o fora. havia sido derrotado pelo cinema estereoscópico. maldito seja james cameron.

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agradecimentos à querida julia ayres vieira, pelo debate que originou a idéia do post e alguns de seus principais argumentos.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

sobre coisas não ditas

queria poder escrever uma história bonita, reconfortante e calorosa. infelizmente, o único calor gerado no relato a seguir vem dos cigarros acesos por tiago, um após o outro, alguns até ao mesmo tempo.

você talvez consiga imaginá-lo com uma jaqueta de couro com a gola virada para cima, camisa xadrez e barba por fazer, mas a verdade é que ele lhe surpreenderia. tiago era, na verdade, um camarada dos mais sem graça. estava sentado na beirada da janela de seu quarto no apartamento 607, com uma velha camisa branca gasta enfiada pra dentro da calça cor de burro quando foge, barba feita pela manhã e cabelo preto e quadrado. era a velha e clichê imagem do jovem que parece mais velho do que realmente é, sentado no parapeito à noite com apenas a luz da lua inundando seu quarto e aquele pontinho luminoso do cigarro flutuando na semi-escuridão. a iluminação branca refletia em seus óculos que, por sua vez, refletiam no vidro, formando um tedioso círculo vicioso.

lá estava ele sentado, pensando em tudo, mas quase adormecido e não conseguindo se concentrar em nada. foi quando veio a imagem de uma lembrança de uma vida tão distante que mais parecia sonho. isso mesmo, a imagem de uma lembrança de uma vida. pode parecer confuso, mas esforce-se que conseguirá entender o que digo.

não era uma lembrança propriamente dita, era como uma foto, um frame de memória, congelada e imóvel. no entanto, por mais que nada se movesse, era possível experimentar cada aroma e ouvir cada som daquela cena de uma maneira que era vívida demais para ter sido apenas um sonho.

e sonho definitivamente não o era, pois ele se lembrava que, um dia, aquilo realmente acontecera. de certa forma, acontecera por anos, numa rotina diária que raramente era interrompida. e não havia acontecido há tanto tempo atrás, apesar de parecer ser outra vida.

ali, naquela imagem, tiago se reconhecia na figura do rapaz abraçado na cama a uma jovem mulher de não mais de 17 anos. ele conseguia ver a si mesmo segurando com a força de alguém que não pretende soltar nunca mais, sentia borbulhar novamente aquelas emoções há muito esquecidas, se entregava àquele perfume que por tanto tempo infestou seu travesseiro, mas não conseguia se colocar naquele lugar, naquela cama, com aquela guria.

e haviam se passado apenas cinco anos.

ele parou então para finalmente se concentrar naquele momento em que uma vida deixou de existir para dar lugar a outra. em que o antigo tiago se despediu do mundo e apresentou o novo. a noite em que tiago, o primeiro, não disse nada.

ela gritava, jogava coisas pelo quarto. no presente, aquele jovem sentado na janela conseguia ver onde sua edição original de 1984 caía, próxima ao pé da cama, e contava em quantos pedaços havia se despedaçado seu abajur azul marinho, presente de sua mãe. naquela noite, ele também apenas olhava, mas atônito. havia sido pego de surpresa e ainda não conseguira se recuperar do baque. tinham terminado há duas noites, mas ela ainda não devolvera as chaves do apartamento.

ele havia tomado a iniciativa em terminar, apesar de ainda sustentar sentimentos que alguns podem chamar de amor. o relacionamento entre os dois já se desgastava há alguns meses e, apesar dos momentos de paz após o sexo, logo acabavam se lembrando de tudo que não toleravam um no outro. ele gostava de acreditar que era o mais forte entre os dois, o mais maduro. logo, se alguém teria de tomar uma atitude não seria ela.

mesmo em uma relação que resistia apenas pela inércia, o fim não foi dos melhores. ele falou que a amava, mas que era melhor dar um tempo, pensar melhor nas coisas. ela, a princípio, ficou enraivecida, xingou, gritou, esbofeteou até acabar arrependida. dizia que iria mudar, que os dois poderiam sobreviver, mas ele se manteve irredutível.

no dia seguinte, ela o procurara, queria conversar, reatar, transar até tudo aquilo ficar pra trás, mas encontrou um tiago diferente do que aquele que conhecia. ainda não era o segundo, mas já tentava ser. obviamente, para ele não era a coisa mais fácil a se fazer. queria com todas as forças sofrer essa transformação, pobre coitado, mas seres humanos não podem apenas fabricar casulos para saírem novos.

ele precisava de um empurrão, um combustível, um reagente que o fizesse abandonar de vez a outra vida. ela veio na forma de uma força feminina irresistível que abriu a porta de seu apartamento de um só vez e indagou a plenos pulmões: "a minha amiga, seu filho da puta?".

em seu quarto, cinco anos depois, ele desejava ter conseguido responder alguma coisa. pensando agora, preferia até ter mentido, continuado naquela outra vida, aquela que parecia apenas um sonho.

gostaria de ter dito que não, que era coisa da cabeça dela, que jamais havia nem tocado em outra mulher, mas aquela era sua chance de mudar, de fugir, de se tornar outro. ele observava, em seu sétimo cigarro, seu semblante mais jovem mudo, sem saber o que dizer, enquanto seu quarto era revirado pela fúria de uma vida passada, que, após tentar com todas as forças se manter viva, finalmente o abandonava.

existem esses momentos nas histórias das pessoas. instantes em que você pode ir para a balada ou estudar mais um pouco; voltar para casa dirigindo ou tomar mais um whisky; pegar o telefone para pedir uma pizza ou perdão; correr ou ficar na chuva; esquerda ou direita. nós os vivemos diariamente. toda hora uma vida se desfaz para dar lugar a outra. no entanto, poucas são as ocorrências assim tão claras.

tiago se deu conta disso ao acender o nono cigarro. o novo tiago, pelo menos. este aqui que vos fala, que habita uma mente quase adormecida há pouco menos de cinco anos, percebeu isso enquanto ficava calado e pode dizer: hoje nós dois gostaríamos de ter dito alguma coisa.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

sobre o homem que tinha amigos demais

entre os corredores, alunos e funcionários da universidade albuquerque, localizada na zona oeste de são paulo, existia apenas uma unanimidade: rambo nogueira era o ser humano mais amigável que já havia frequentado aquela nobre instituição de ensino superior. apesar do nome, rambo tinha tamanho poder cativante que, mesmo cinco anos após sua formatura, ainda existiam dezenas que garantiam ser alguns de seus amigos mais íntimos, não lhe poupando elogios. obviamente que existiam aqueles mal intencionados que apenas queriam pegar carona no mítico carisma do veterano, mas a grande maioria enchia suas bocas de sinceridades ao falar da amizade.

rambo passava pela puberdade quando percebeu o poder que exercia sobre as outras pessoas. sempre tivera amigos, mas, repentinamente, todos pareciam querer lhe fazer favores, dar-lhe uma mão, ajudar como pudessem. claro que isso implicava em expectativas de reciprocidade, como acontece em qualquer relação afetiva platônica. mas isso não era nada.

o porteiro tomou súbito interesse em sua vida e, curiosamente, passou a lhe contar todos os detalhes de suas últimas conquistas amorosas no bailão. a professora de história tolerava seus atrasos na entrega de trabalhos, fazia vista grossa para as breves adormecidas durante a aula. até seu cachorro, que sempre preferira seu irmão mais novo, agora ficava à porta esperando seu retorno da escola, com o par de chinelos do dono na boca.

rambo era amigos de todos, e todos o amavam. e ele odiava isso. não suportava tamanho carinho e atenção, queria gritar a cada sorriso compreensivo. desejava, acima de tudo, fugir desesperadamente de cada indivíduo que, apesar do nome lhe ser desconhecido, o cumprimentava não com um aperto de mão, mas com um abraço apertado.

seus amigos de verdade, aqueles que já o conheciam antes da estranha maldição ser lançada, se divertiam com a situação. observaram, em primeira mão, a evolução gradual de rambo para um dos seres mais agressivos que já caminharam sobre este planeta. e gargalhavam com isso.

logo, a saudação do jovem não passava de um grunhido e o seu nome do meio passava a ser sarcasmo. a cada palavra de incentivo, a resposta era um palavrão - de fato, foram tantos ao longo dos anos que muitos nem existiam ainda. hoje, habitam as páginas de qualquer dicionário informal. mesmo assim, seu carisma perdurava. as pessoas acreditavam que aquele era apenas o jeito dele. e aquele era um jeito divertidíssimo.

"ahahaha! tá certo, bambão! eu enfio esse desenho assim que você me disser se a perspectiva está real ou não... o que?? parece a minha mãe fazendo o que?? porra! não é que tu tá certo? valeu, bambão! sabe tudo, moleque!" - enquanto isso, rambo agonizava.

para piorar seu humor, que já não era dos melhores, rambo, aos 25 anos, nunca tinha conseguido dar uma trepada. aliás, beijo mesmo, só roubado. de amigas. "aaah, bambo. claro que eu vou ao cinema contigo. não, é sério! eu adoraria! qual filme? não importa! faz tempo que eu queria sair com você, mesmo... ah, que ótimo! vou levar o carlos, assim você me diz se aprova o namoro e...".

o lado bom, que ao menos o acalentava, era que esse seu poder o fizera escalar rapidamente os degraus do mundo corporativo. em apenas três anos trabalhando no banco américa, era o primeiro funcionário com menos de 30 anos promovido a diretor. seus chefes se encantavam com seu poder de liderança e sua franqueza. o projeto, aquele que tinha 23 pessoas dedicadas exclusivamente a ele nos últimos sete semestres, realmente era uma bosta, um cu sem tamanho. com seu fim, não só pouparam ainda mais tempo, mas também conseguiram cortar todo um setor da folha de pagamento. o jovem era um talento!

considerado um gênio, era a maior prata da casa desde a sua fundação. pelo menos até a tarde de 27 de outubro, em que seu chefe o chamou para uma conversa. rambo estava sendo, infelizmente, desligado da corporação. não, não haveria como poder dar boas referências. ele sentia muito, tinha rambo como um filho, um irmão, até!, mas a diretoria andava preocupada. não acreditavam que o senhor rambo nogueira tivesse a postura necessária para o agressivo mundo das finanças.

rambo estava na rua, com um apartamento de R$700 mil ainda para pagar. o motivo? amigável demais.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

sobre os amores dos outros

ela abre a porta e dá de cara com daniel, que entra esbaforido.
- eu te amo, marina.
a declaração a pega despreparada.
- sério?
- sério, pombas! quem inventaria algo assim?
- ah, querias que eu dissesse o que? puta surpresa, inferno!
- tá, tá! desculpa. é que eu precisava tirar isso do peito o quanto antes e... - ele ouve o burulho do chuveiro ligado e finalmente repara que ela está de roupão, mas com os cabelos secos. - putz! desculpa, mesmo. não queria invadir desse jeito e interromper teu banho, mas...
- agora já foi! desde quando tás apaixonado por mim?
- apaixonado, não! eu te amo! pelo o que a carlinha disse, há uns três meses!
- foi quando a gente ficou a primeira vez, né?... - ela nota que há algo errado - peraí. "pelo o que a carlinha disse"?...
- é! mas o joca começou a dizer isso há dois anos atrás. lembra como eu vivia grudado em ti e tals?
- lembro... mas calma. desde quando, afinal?
- ah, disso eu não tenho certeza, não! sei só o que me disseram. você conhece o joca. quando ele mete algo na cabeça, fica martelando o tempo todo.
- então deixa eu ver se entendi. você me ama, mas não sabe desde quando. sabe apenas o que a carlinha e o joca dizem?
- isso aí, boneca. no começo achei que era viagem deles, mas eles repetiram tanto que eu pensei "acho que não custa nada tentar, né?". agora vem cá que temos tempo pra recuperar até o casório.
- casório?! que mané 'ório?!
- ah, nós temos que fazer tudo direitinho, né. namora uns quatro meses, noiva por um ano, casa e, depois de um tempo, tem os dois filhotes!
- que porra que tu tá falando, daniel??
- porra, não! é tudo nos conformes. mamãe sempre disse que...
- tava demorando. agora é tua mãe que quer que a gente case.
- não exatamente a gente, eu e você. mas ela sempre pregou que tudo deve ser feito com ordem e planejamento. afinal... - silêncio. ele nota que o chuveiro foi desligado - tem alguém aqui contigo?
- ...
- dani, meu filho! que diabos tás fazendo aqui, moleque? - pergunta uma cabeça masculina saindo pela fresta da porta do banheiro.
- joca?... - ele procura por uma resposta vinda de marina que, a essa altura, já está jogada no sofá, declarando a derrota.
- olha, daniel. desculpa, mas tu escolheu a hora errada de declarar amores. eu to apaixonada pelo joaquim.
-ahá! sabia!!! eu sempre te disse que eras apaixonada pelo joca e você vinha com uma história que era ciúme e... ah, caralho. eu sempre te disse, não é?
- isso aí, espertinho. eu cansei de afirmar que era coisa da tua cabeça, mas tu insistiu tanto que... "achei que devia tentar, né?". agora dá o fora daqui. como a minha mãe sempre dizia: dois é bom, três é putaria.