segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

sobre coisas não ditas

queria poder escrever uma história bonita, reconfortante e calorosa. infelizmente, o único calor gerado no relato a seguir vem dos cigarros acesos por tiago, um após o outro, alguns até ao mesmo tempo.

você talvez consiga imaginá-lo com uma jaqueta de couro com a gola virada para cima, camisa xadrez e barba por fazer, mas a verdade é que ele lhe surpreenderia. tiago era, na verdade, um camarada dos mais sem graça. estava sentado na beirada da janela de seu quarto no apartamento 607, com uma velha camisa branca gasta enfiada pra dentro da calça cor de burro quando foge, barba feita pela manhã e cabelo preto e quadrado. era a velha e clichê imagem do jovem que parece mais velho do que realmente é, sentado no parapeito à noite com apenas a luz da lua inundando seu quarto e aquele pontinho luminoso do cigarro flutuando na semi-escuridão. a iluminação branca refletia em seus óculos que, por sua vez, refletiam no vidro, formando um tedioso círculo vicioso.

lá estava ele sentado, pensando em tudo, mas quase adormecido e não conseguindo se concentrar em nada. foi quando veio a imagem de uma lembrança de uma vida tão distante que mais parecia sonho. isso mesmo, a imagem de uma lembrança de uma vida. pode parecer confuso, mas esforce-se que conseguirá entender o que digo.

não era uma lembrança propriamente dita, era como uma foto, um frame de memória, congelada e imóvel. no entanto, por mais que nada se movesse, era possível experimentar cada aroma e ouvir cada som daquela cena de uma maneira que era vívida demais para ter sido apenas um sonho.

e sonho definitivamente não o era, pois ele se lembrava que, um dia, aquilo realmente acontecera. de certa forma, acontecera por anos, numa rotina diária que raramente era interrompida. e não havia acontecido há tanto tempo atrás, apesar de parecer ser outra vida.

ali, naquela imagem, tiago se reconhecia na figura do rapaz abraçado na cama a uma jovem mulher de não mais de 17 anos. ele conseguia ver a si mesmo segurando com a força de alguém que não pretende soltar nunca mais, sentia borbulhar novamente aquelas emoções há muito esquecidas, se entregava àquele perfume que por tanto tempo infestou seu travesseiro, mas não conseguia se colocar naquele lugar, naquela cama, com aquela guria.

e haviam se passado apenas cinco anos.

ele parou então para finalmente se concentrar naquele momento em que uma vida deixou de existir para dar lugar a outra. em que o antigo tiago se despediu do mundo e apresentou o novo. a noite em que tiago, o primeiro, não disse nada.

ela gritava, jogava coisas pelo quarto. no presente, aquele jovem sentado na janela conseguia ver onde sua edição original de 1984 caía, próxima ao pé da cama, e contava em quantos pedaços havia se despedaçado seu abajur azul marinho, presente de sua mãe. naquela noite, ele também apenas olhava, mas atônito. havia sido pego de surpresa e ainda não conseguira se recuperar do baque. tinham terminado há duas noites, mas ela ainda não devolvera as chaves do apartamento.

ele havia tomado a iniciativa em terminar, apesar de ainda sustentar sentimentos que alguns podem chamar de amor. o relacionamento entre os dois já se desgastava há alguns meses e, apesar dos momentos de paz após o sexo, logo acabavam se lembrando de tudo que não toleravam um no outro. ele gostava de acreditar que era o mais forte entre os dois, o mais maduro. logo, se alguém teria de tomar uma atitude não seria ela.

mesmo em uma relação que resistia apenas pela inércia, o fim não foi dos melhores. ele falou que a amava, mas que era melhor dar um tempo, pensar melhor nas coisas. ela, a princípio, ficou enraivecida, xingou, gritou, esbofeteou até acabar arrependida. dizia que iria mudar, que os dois poderiam sobreviver, mas ele se manteve irredutível.

no dia seguinte, ela o procurara, queria conversar, reatar, transar até tudo aquilo ficar pra trás, mas encontrou um tiago diferente do que aquele que conhecia. ainda não era o segundo, mas já tentava ser. obviamente, para ele não era a coisa mais fácil a se fazer. queria com todas as forças sofrer essa transformação, pobre coitado, mas seres humanos não podem apenas fabricar casulos para saírem novos.

ele precisava de um empurrão, um combustível, um reagente que o fizesse abandonar de vez a outra vida. ela veio na forma de uma força feminina irresistível que abriu a porta de seu apartamento de um só vez e indagou a plenos pulmões: "a minha amiga, seu filho da puta?".

em seu quarto, cinco anos depois, ele desejava ter conseguido responder alguma coisa. pensando agora, preferia até ter mentido, continuado naquela outra vida, aquela que parecia apenas um sonho.

gostaria de ter dito que não, que era coisa da cabeça dela, que jamais havia nem tocado em outra mulher, mas aquela era sua chance de mudar, de fugir, de se tornar outro. ele observava, em seu sétimo cigarro, seu semblante mais jovem mudo, sem saber o que dizer, enquanto seu quarto era revirado pela fúria de uma vida passada, que, após tentar com todas as forças se manter viva, finalmente o abandonava.

existem esses momentos nas histórias das pessoas. instantes em que você pode ir para a balada ou estudar mais um pouco; voltar para casa dirigindo ou tomar mais um whisky; pegar o telefone para pedir uma pizza ou perdão; correr ou ficar na chuva; esquerda ou direita. nós os vivemos diariamente. toda hora uma vida se desfaz para dar lugar a outra. no entanto, poucas são as ocorrências assim tão claras.

tiago se deu conta disso ao acender o nono cigarro. o novo tiago, pelo menos. este aqui que vos fala, que habita uma mente quase adormecida há pouco menos de cinco anos, percebeu isso enquanto ficava calado e pode dizer: hoje nós dois gostaríamos de ter dito alguma coisa.

Um comentário:

Ketryn Alves disse...

achei bonito...
como muitas das coisas que são tristes.