terça-feira, 9 de outubro de 2007

sobre páginas em branco

sentado à frente de uma tela em branco, não sabia sobre quais letras repousaria seus dedos.
tivera sempre uma habilidade nata para transcrever a arte da vida em palavras. e tinha um bloqueio.
não era bom em conversas. se enrolava em discursos. corava ao trocar mais que duas sentenças com um desconhecido.
mas escrevendo, ah, escrevendo tinha o mundo em suas mãos. o destino de inúmeros personagens se desenlaçava em sua mente como que por um passe de mágica. sua vida, sua e a de todos aqueles que estavam ao seu redor tomavam forma sob nomes e aparências distintas àquelas da vida real. só assim sentia ter o controle.
só assim, e tinha um bloqueio. a branquidão imensurável da tela a sua frente era uma afronte, um cuspe bem dado em sua face. o monitor zombava dele. não só dele, mas também de toda a sua vida.
a agonia transpirava por seus dedos, posicionados em riste contra o teclado. se este fosse um conto de época, estariam entrelaçados com força contra algum lápis nº2 que fosse. este não é o caso. é um conto moderno sobre um escritor, seu computador e uma vida em branco.
quando havia sido a última vez que lhe acontecera algo desse tipo? não mais que um par de anos atrás. mesmo assim, aquela não tinha representado tamanho fracasso.
pois o bloqueio vinha na hora de sua autobiografia. uma obra aguardada pelos leitores fiéis e ansiada pela crítica. aos 78 anos, era de se esperar que deixasse alguma espécie de legado assinado de sua própria vida.
tudo que via, no entanto, era uma tela em branco. páginas em branco que viriam a representar uma vida vazia. uma vida de livros, e não de ações.
dias, semanas e meses se passavam em branco. sim, sua epopéia contra a máquina e a obra havia começado há muito tempo atrás. a angústia não era de agora. julgava que começara no momento de seu nascimento, mas a memória lhe traía. não era mais um escritor, um autor. era um reles mortal com uma vida gasta em vão.
em vão, não.
finalmente, percebia a beleza de tudo isso.
a beleza de ter uma tela em branco a sua frente, uma tela que poderia refletir quaisquer desejos que desejasse refletir. teria a vida que quisesse, e seria a partir deste momento.
a tela, afinal, podia estar em negro, impossibilitando seu trabalho e inviabilizando que gerações futuras viessem a conhecer a vida que levara em sua mente.
foi com isso em conta que tomou um gole de whisky do copo que se encontrava ao lado do teclado e repousou, pela última vez, o dedo médio sobre a tecla da letra w.
no dia seguinte, a diarista gritou ao achar o corpo do patrão sem vida em frente a um monitor com uma única letra escrita nele, além de sua assinatura padrão, mais abaixo.

"w


C.S."

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

sobre a arte de mentir

em meu nascimento, fui agraciado com um dom. uma habilidade que ultrapassa a de um ser humano normal. se algum dia houvesse uma competição mundial, eu seria proibido de participar para dar chance aos outros concorrentes. enfim, eu minto. falando assim, parece simples, mas a verdade é que não se pode medir o tamanho da minha maestria para a decepção - engraçado usar a palavra "verdade" em um texto sobre a mentira.
desde pequeno, escapei das mais variadas situações, broncas, sinucas, buracos e problemas usando deste meu presente divino. simplesmente olhava bem fundo nos olhos daquele que me inquiria pelo que realmente havia acontecido, abria a boca e a magia acontecia. sinceramente, digo aqui que não sei exatamente como acontece. meus lábios se distanciam e o som sai, formando uma história tão falsa e coerente que não há como meu pobre cérebro ter inventado algo parecido. isso - meu dom é ainda maior que minha própria inteligência, que, sejamos honestos, é bem limitada.
sempre tive orgulho desta habilidade. quando amigos estão em apuros, eu mais que prontamente me ofereço para resgatá-los e as palavras se formam com velocidade e ferocidade, inventando uma realidade totalmente distorcida. eu literalmente mergulho neste mundo mentiroso que habita as mais sombrias profundesas da minha alma. não gaguejo, não olho para os lados, não fico mentalmente inventando histórias. é como se elas já existissem, já fossem verdades existentes em alguma outra dimensão além desta.
mesmo com toda essa alegria, toda essa calmaria que tal habilidade me proporciona, outro dia o tiro me saiu pela culatra. a vida tem dessas coisas, vejam só. minto, minto e dificilmente sou descoberto. no entando, sempre fica no ar aquela inquietação, aquele mal-estar que só uma mentira bem contada proporciona. claro, quando a mentira é descarada, logo é desmascarada e todos podem rir ou punir o autor. agora, quando não se pode provar a farsa, todos sabem no seu inconsciente que estão sendo enganadas, que há algo de podre no reino da dinamarca - como já dizia o bardo -, mas não há provas. por isso, por mais que ninguém até hoje tenha conseguido provar com exatidão que eu estava mentindo, todos sempre me olham com desconfiança. e foi isso que me pegou pelo cangote.
estava eu, numa dessas voltas que só a vida dá, em uma situação na qual eu precisava desesperadamente falar de forma sincera. e era assim que eu me comportava. quisera eu ter a frieza de controlar meu dom e poder mentir como nunca. infelizmente, cada vez que eu falava alguma coisa era a mais pura realidade que atingia os ouvidos do meu interlocutor. isso me exasperava, me afogava num mar de sinceridades. por ironia, não se acreditava em uma palavra que eu dizia. eu lutava por uma brecha de ar, uma chance de provar que estava bem-intencionado, mas todas as minhas tentativas eram vãs. acabei admitindo a derrota, mesmo me sacrificando até o último minuto.
é. sempre tive o dom da palavra. sempre tive a maestria para a mentira. mas o universo observava e decidiu me punir. e não é que me puniu bem quando falava a verdade?
enfim, o universo é mesmo um gozador. fazer o quê. aprende-se que, às vezes, é muito mais fácil de se acreditar em uma mentira do que na mais pura verdade.




em um texto sobre a mentira, como saber se alguma coisa do que eu disse é verdade? afinal, abri o texto dizendo que domino todos os aspectos que envolvem uma boa fraude. irônico. bem, minto.
minto?