quarta-feira, 21 de novembro de 2007

sobre cigarros, solidão, tiros, propostas e inocentes

dois amigos em algum bar da vida, por aí, deus sabe onde. conversam sobre suas marcas de cigarro prediletas. queria eu conhecer metade delas. atrás do balcão, um homem com um avental que um dia, não tenho certeza, já fora branco e com os cabelos ficando ralos, puxados para trás, bem apertados num elástico que forma um rabo-de-cavalo daqueles que só se vê nos piores botecos (ou nos melhores salões de beleza). a oleosidade flutua pelo ar como uma entidade, não se sabe se vinda da gordura usada para fritar as batatas ou se do próprio rabo-de-cavalo do homem de avental. um jogo de futebol qualquer passa na pequena televisão posicionada acima da geladeira. na mesa localizada entre os dois amigos, uma garrafa da mais fina cerveja servida no local e dois copos, cheios pela metade.
no entanto, menti quando disse que era um bar. na verdade, era um belíssimo restaurante localizado no bairro mais afortunado da cidade. menti também quando disse que eram dois os que conversavam. era um só e se mantia calado, quieto, mergulhado na própria instrospecção. logo, seria estranho se houvesse dois copos à sua frente. esse único copo não estava cheio de cerveja, e sim de vinho, o mais barato servido no estabelecimento. a oleosidade, no entanto, era a mesma, que podia vir tanto da cozinha quanto do rabo-de-cavalo do garçom, um homem ainda moço, com longos cabelos negros unidos suavemente num elástico que lhe dava um quê francês se unido ao bigode fino sobre seus lábios e vestindo um avental de brancura tão intensa que podia ser comparada apenas à de seus dentes. no telão, localizado à esquerda do homem calado, passavam as notícias do dia.
de súbito, tiros. o homem agora era três, que conversavam animadamente até ter a discussão interrompida pelos disparos, felizmente saídos do cano de um .38 que se encontrava do outro lado de uma bela tela de plasma do aparelho televisor do local. recompostos do susto, chamaram a franzina garçonete alemã da cantina italiana em que se encontravam e pediram, de sobremesa, uma torta holandesa. aproveitaram também para pedir que a moça, com seus curtos cabelos tão claros que pareciam com o branco do avental que usava, enchesse novamente suas xícaras com café.
ao ouvir o pedido, a jovem não podia entender o que estava acontecendo. se conheciam há tão pouco tempo e ele já lhe propunha em casamento? só podia ser algum louco. afinal, em apenas três meses não dá pra saber com exatidão se a pessoa é normal ou não. isso, era um lunático. mas era um lunático rico, lindo, com olhos verdes e por quem ela estava perdidamente apaixonada. diabos, pensava que aquele jantar à beira do cais era apenas alguma armação dele para conseguir dela o que vinha pedindo desde que haviam começado a dividir a cama. e ela cederia, facilmente. debaixo do vestido comportado, podia sentir a lingerie branquíssima rendada que comprara para a ocasião. tentou ganhar tempo, recuperar o fôlego. ajeitou os cabelos ruivos ondulados que se prendiam em um sensual rabo-de-cavalo. próxima à mesa do casal, a banda continuava seu concerto em cima do palco. ao final da música, palmas calorosas. no entanto, o pretendente continuava a esperar sua resposta.
suando, podia sentir suas unhas se enfincando nas palmas das próprias mãos. sempre fazia isso quando estava nervoso. a resposta daquela mulher era o momento crucial de sua vida. olhava ansioso para o relógio, mas mesmo que o ponteiro dos segundos avançasse apenas uma casa, para ele era como se um dia inteiro houvesse passado. pensamentos de culpa e de vergonha inundavam sua mente. talvez tivesse cometido algum erro. talvez não devesse ter feito aquilo, no final das contas! agora era tarde, ela havia se levantado de sua cadeira com uma cara de profunda certeza. "inocente", foi o que disse a jurada número um, e seu rabo-de-cavalo de cabelos tão negros quanto a morte balançou lentamente. um sorriso se estampou na face do acusado, mesmo que continuasse suando. o tribunal entrou num caos de enormes proporções. a grande maioria das pessoas que assistiam ao julgamento, indignadas, protestavam. a mãe das duas meninas que haviam sido vítimas daquele monstro chorava compulsivamente. as câmeras de tv, que haviam acompanhado o julgamento desde o início, procuravam registrar todas as emoções presentes. enquanto o inocentado saía do tribunal por um corredor que os policiais haviam conseguido abrir entre a multidão enfurecida, a oleosidade podia ser sentida fortemente no ar. talvez vinda do próprio homem suado que caminhava solitário pensando na felicidade que tivera. um sujeito grisalho, gordo, vermelho de raiva conseguiu forçar passagem até os policiais. era o marido da mãe que chorava e pai das meninas que haviam deixado a vida.
tiros. desta vez, de verdade.