segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

sobre o heterônimo

uma outra noite, um outro sonho. desta vez, totalmente diferente do último. mas ele ainda está lá.
o pássaro. ainda no parapeito da janela, seja do quarto, seja do trem, seja do Vectra avermelhado cor-de-sangue que dirige agora.
os sonhos têm sido assim, todos eles. a cada dia, um novo cenário. a ave diz que quer vê-lo conhecer o mundo. o carro dirigido pelo jovem passa pela placa em que se lê: "Praga, 47 km."
"agora entendi. vou morrer, não vou?", pergunta o jovem ao pássaro empoleirado, agora, no volante.
"não diga tolices. muito menos as pergunte. que história é essa de morte?"
"estava apenas pensando. a cada noite de sonhos, sou transportado, independentemente de minha vontade, para os lugares mais variados. esta noite, no entanto, vim parar em Praga, a cidade que eu sempre quis conhecer. aliás, durante toda a semana, fui somente a lugares de, ironicamente falando, meu 'sonhos'. acho isso estranho. você nunca foi de me agradar. seria possível que o tempo o está suavizando?"
"já lhe disse para parar com as tolices", a ave respondeu, logo após uma forte bicada no dedo do rapaz que lhe arrancou sangue. "ninguém aqui lhe permitiu 'pensar' sobre merda alguma. apenas continue guiando."
"mas nesta escuridão é impossível ver coisa alguma à nossa frente." logo após dizer tais palavras, o jovem se surpreendeu ao piscar os olhos e encontrar o sol brilhando ao seu redor.
com o Sol, ele podia ver longas distâncias. a paisagem lhe acalmava e confortava. era como se nunca tivesse tido preocupação alguma em sua vida. foi então que percebeu. ele conhecera o pássaro há apenas poucas semanas, durante um sonho no qual jogava pebolim com Tolstoi, Stephen Hawking e, para sua surpresa, Dona Júlia, a mulher que lavava a roupa de seus pais quando era apenas um infante. o pássaro viera voando e pousara na cabeça do goleiro do time controlado por Hawking. nesta hora, o jovem fizera um gol fenomenal, enquanto seus oponentes tentavam espantar a ave. assim, o romancista russo, que fazia dupla com o físico britânico, lhe rogara uma praga. a partir daquela noite, o animal alado sempre habitaria os sonhos do estudante brasileiro.
contudo, o que era para ser uma maldição se mostrou uma bênção. logo na noite seguinte, durante uma discussão acalorada sobre nanotecnologia (solução ou destruição?), a ave lhe revelara ser Álvaro de Campos, o heterônimo do poeta português. Admirador profundo de seu trabalho, o garoto passou dias calado e obediente, tentando aprender sempre o máximo com o poeta/pássaro/mestre. mas a arrogância e prepotência do animal-autor lhe foi desgastando a paciência. após noites sem fim e diversos lugares visitados - incluindo uma visita a uma amiga muito próxima, atravessando a ponte sobre o rio Furness - havia decidido confrontar aquele que não lhe permitia uma noite de sono tranqüilo sequer.
suficientes eram as dúvidas que tinha quando acordado, - se iria passar em uma boa faculdade; que tipo de vida teria; se aquela sensação de conhecer alguém uma existência inteira, mesmo a tendo encontrado pela primeira vez há não mais que um ano, significaria algo - agora tinha que se preocupar com outras tensões e debates enquanto se aconchegava no abraço de Orfeu, o antigo deus grego que embalava os homens em tempos remotos?
isso não era justo. a vida não poderia ter lhe pregado tal peça. sempre fora do tipo que acreditava que não existiam forças além da compreensão que regiam as vontades da humanidade, que dirá de um único ser. como poderia lhe entregar assim, de mão beijada, a responsabilidade sobre tudo o que lhe acontecia em vida? não era ele quem era mestre do próprio destino, controlando tudo com as próprias mãos?
daquela vez, a ave pagaria. daquela vez, sumiria de uma vez por todas e, junto a ela, suas preocupações, medos e incertezas. daquela vez, atravez da janela do Vectra ensangüentado de cor vermelha, a ave e ele mesmo conheceriam suas sortes.
e foi assim, assim mesmo, mundanamente, que o volante foi virado violentamente para a direita, direcionando o automóvel para uma cerca que separava a estrada de um rio localizado por volta de cinco metros abaixo do nível da rodovia. jovem e animal mergulharam para o incerto e, enquanto a ave gritava, ele ria. sua excitação com o desconhecido ainda chamava seu coração de lar.
o barulho surdo do choque do carro contra a água fez o garoto acordar em sua cama, com o sol levantando-se ao horizonte.
na noite seguinte, no entanto, um jovem abriu seus olhos novamente para um mundo de sonhos, quando um grasnado familiar soou ao seu lado.

sobre a Queda

e durante aquele tempo havia sofrido e se alegrado; havia comparecido a homenagens póstumas em salões funerários e dançado em pomposos bailes; havia temido a incerteza daquilo que sabia e cantado poesias em prosa e verso; havia chorado por pessoas que nem ao menos conhecia e sorrido pela beleza de eventos alheios à sua pessoa; havia amado e amado.
tudo isto durante; durante a Queda.
de certo que um dia, sobre chão sólido, caminhara, engatinhara e se arrastara. no entanto, o tempo que separava o hoje daquela época era tamanho que pareciam não mais do que meros sonhos, lembranças de vidas passadas.
a Queda era tudo que se lembrava. tornara-se tudo o que conhecia. tornara-se sua vida.
a origem da Mesma já não lhe era importante. sabia apenas que caía. nada mais.

no instante seguinte, a primeira coisa que sentiu foi o forte gosto de ferro em sua boca, seguido de uma dor lascinante em todos os membros de seu corpo. sentia os efeitos da gravidade.
sentia também o contato com o solo, pressionado contra a sua pele.
percebia que a queda se fora.
ainda desorientado, procurou habituar-se à sua nova condição. os membros, fracos pelo desuso, lutavam para se sustentarem.
enfim, se ajoelhou e conseguiu se manter em pé.

com uma das pernas se dobrando para frente, deu seu primeiro passo, visando o horizonte com um sol nascente tão distante.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

sobre pensamentos II - os malditos

às vezes, dá a louca na Natureza e ela acha por bem criar irmãos sem qualquer laço genético. felizmente, a Amizade se encarrega deles.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

sobre talita viana

atirou os documentos na parede e gritou:
- eu não aguento mais isso!
a gata, gorda desde que era filhote, tomou um susto e desceu do ármario, preparada para a bronca. felizmente, o problema não era ela.
caio morava sozinho num pequeno apartamento. bem, sozinho mesmo, não. havia a gata.
as folhas ainda voavam pela sala quando percebeu que não havia mais ninguém ali, com excessão do felino obeso que atendia pela alcunha de talita viana. ele sabia que esse não era um nome comum a animais de estimação, sua mãe e sua ex-namorada já haviam lhe alertado quanto a isso, mas o bicho realmente tinha cara de talita viana, parecia gostar do nome dado.
- desculpem, caras. fica pra outro dia. tenho que voltar para casa. vocês sabem, talita não consegue se virar sozinha. - de fato, ela não conseguia. era apenas uma gata gorda. no entanto, os 'caras' não faziam idéia. era menos humilhante fingir que tinha alguém esperando em casa do que apenas dizer que não tinha saco para ficar no bar até altas horas, tomando cerveja e trocando conversa pequena. também era menos patético que esse alguém fosse uma mulher, e não um simples animal.
nenhum dos colegas de trabalho jamais havia conhecido o apartamento de caio. ele sempre tomara o cuidado para não deixar nenhuma espécie de convite no ar.
- pô, mais tarde passo na tua casa, quero te mostrar um disco fodido da rita lee que eu comprei. coisa rara. curtes rita lee?
- curto, curto. infelizmente, hoje não é um dia bom pra mim... - e era isso. nada de "quem sabe outro dia" ou "fica pra próxima". caio não podia entregar que era um farsante.
no trabalho, era conhecido como um cara de família. um exemplo da velha guarda. um gentleman, por assim dizer. depois do trabalho, nada de esticar a conversa no boteco da esquina. tinha de voltar para casa, voltar para a sua talita. ironicamente, por se passar por uma espécie em extinção, caio era admirado. não tinha amigos próximos, ou até mesmo amigos distantes. mas tinha admiradores.
de qualquer forma, a farsa não duraria para sempre. e ele sabia disso. começara a trabalhar na repartição há distantes dez anos e desde então conseguia manter a ilusão funcionando. com a passagem dos anos, no entanto, começara a perder o sono. tinha horríveis pesadelos com uma talita gigantescamente deformada, gorda, destroçando as pessoas no escritório. ninguém corria, apenas se entregavam à sua bocarra gritando: "eu sabia que era mentira! mentirosooooooooo!...".
com o fim das noites de sono, tinha começado a delirar acordado. certa vez, seu chefe de calças cáqui e careca lustrosa entrou em seu escritório agarrado a um cipó, lhe oferecendo um cacho de virgens e um estoque para a vida toda de areia para gatos.
foi num desses delírios que caio atirou as dinamites que tinha nas mãos para matar a salsicha sambista com chapéu côco que se arrastava pela parede de sua sala. vendo as contas sendo levadas pelo vento da janela aberta e da chuva que não demoraria a cair, teve consciência de que não conseguiria segurar. tinha atingido o limite.
não aguentava mais a pressão de suas mentiras. não tolerava mais o peso da vida falsa que apresentava no trabalho. no dia seguinte, levaria talita viana ao trabalho, vestida como ele sempre a vestira, com um gorrinho de lã azul com dois cordões que serviam para amarrar abaixo do queixo e um suéter laranja, que combinava com as listras de suas patas, preparado para a humilhação total.
- isso, amanhã é o dia, talita. amanhã você conhecerá a todos do escritório. seja boazinha com eles, sim? tenho certeza que eles lhe parecerão hostis à primeira vista, enquanto jogam o café quente e as rosquinhas em mim, mas não se preocupe comigo. eu mereço.
talita o observava desde que começaram a morar juntos. tinha visto quando ele chegara em casa animado com o novo emprego e quando começou a perder o sono e a ter alucinações. nada disso lhe dizia muita coisa. ele lhe dava comida, lhe dava almofadas fofas e trocava a areia. acima de tudo, nunca lhe enchia muito o saco quando subia em cima do armário, seu lugar preferido.
enfim, caio bastos era um ótimo animal de estimação.
bocejou e balançou a cabeça afirmativamente.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

sobre desenhos animados

ele ainda assistia a desenhos animados.
ainda chegava em casa, ligava a televisão e se deliciava com as aventuras de um gato e um rato; ainda pegava dinheiro com a mamãe; ainda fumava escondido; ainda chorava.
como poderia que o mundo, a sociedade, a vida esperassem que ele se tornasse, automaticamente, um adulto? o que estipula que, em determinada idade, um ser humano já não é mais uma criança?
seria a lei? neste caso, a lei dos homens, a lei de deus ou a lei da natureza?
que mecanismo movido a engrenagens e molas que o obriga a se tornar um homem?
ele passara a vida ouvindo que tinha que crescer e se tornar um homem. todos que conhecia tinham passado por tal processo. e a pergunta que lhe castigava a mente era: por quê?
por que não se pode crescer e virar apenas uma criança mais velha? afinal, era isso que ele era. um crianção. um tolo, que não sabia mais ou menos da vida do que um jovem de 5 anos.
lutava contra tais impulsos agarrando-se à infância como o bem mais precioso que possuía. podia ir morar sozinho. podia entrar na faculdade. podia, até, se apaixonar, casar e ter filhos. ainda seria uma criança.
antes de dormir, sua mente era um turbilhão de idéias. teria feito tudo o que tinha de fazer no dia? de certo que deixara algo não feito, algo que teria que correr atrás na manhã seguinte. não conseguia se lembrar de quando fora a última vez que se deitara sem pensar isso e tal incapacidade lhe angustiava.
suas responsabilidades eram inúmeras. comer, limpar, estudar, trabalhar, caminhar, exercitar, pagar, descansar. sua própria humanidade, sua infância, se mesclava com as diversas máquinas que atravessavam seu caminho. suas engrenagens agora habitavam o corpo dele, pulsando o sangue e o óleo quente, movimentando as molas de seu cérebro e os neurônios de seu computador.
fumava, um cigarro após o outro, tragando cada miligrama da fumaça espeça que se acumulava em seus pulmões.
dormia um sono inquieto, atravessando as barreiras de tudo que esquecera de fazer no dia.
não era mais uma criança, tampouco era um homem.
o que era? não poderia responder.
ele ainda assistia a desenhos animados!...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

sobre os devaneios e bukowski

eu tinha 19 anos, certo?
era a idade em que ninguém quer saber de nada, muito menos eu. sempre fui um daqueles rebeldes, que eu julgava ver em filmes de james dean. o que ia fazer? era assim e ponto.
o cigarro na boca me dava a sensação de poder. a jaqueta me dava coragem. o ronco da moto me empurrava por abismos.
piegas? talvez. só não me peça agora para olhar pra trás e sentir vergonha de tudo. muito tarde para isso. há muito cheguei em um ponto em minha vida que sentir vergonha não me adianta de muita coisa.
pare pra pensar. quando foi que sentir vergonha lhe causou algum bem? você já ficou com aquela menina que você desejava por meses por perceber quão patético era não conversar com ela por medo? você já correu pelado na rua, com o cabelo meio raspado, o nome daquela faculdade na tua cara, aquela que você acabara de ser aprovado, ao se dar conta de que negar tal felicidade não lhe levaria a lugar nenhum?
não.
você não fez nada disso. eu tampouco o fiz. e isso me dá pena. sou agora aquele gordo suado que senta atrás de uma maldita mesa branca de compensado de madeira e sente pena de si mesmo pela vidinha que leva, atendendo a você - você mesmo - e tendo de aturar aquele seu sorriso de piedade que tenta disfarçar em vão.
e agora vivemos, nesse ritmo de autopiedade e consumismo que fomos levados a manter.
sei que tudo isso parece uma desculpa esfarrapada por tudo que não tive coragem de viver, de sentir, mas não se iluda, não tenho bolas para tanto. inventar desculpas nunca foi comigo.
para inventar boas desculpas, desculpas que realmente colassem, eu teria que botar a culpa em um terceiro, real ou inventado, e minha existêcia sempre foi tão pequena, tão ínfima, que eu não ousaria criar qualquer tipo de problema a alguém que não o merecesse menos que eu.
e esse é exatamente o problema. eu sempre mereci muito mais.
sabe quando alguém chega fodido à sua porta, lágrimas nos olhos e te conta aquela história de vida que não lhe deixará dormir por semanas, só por se lembrar dela, e você, sem saber como lidar com tais problemas, com tais pessoas, sente aquela iluminação divina lhe chegando e solta aquelas (porras) daquelas palavras: "hey, podia ser pior."?
então, eu sou aquela porra daquele pior. eu sou a raspa do tacho, aquele sentimento inumano que não atinge nem as drogas daqueles ratos que se vê na sarjeta do cemitério da consolação, por volta das duas da madrugada.

enfim, você já entendeu. eu tinha 19 anos.
eu era jovem e não sabia que porra fazer. não sabia como encarar aquela situação. só pensava nos pais dela dizendo: "você acabou com a vida da nossa princesa, seu burguesinho de merda".
caralho, nunca fui burguesinho. nunca fui magnata. nunca fui pobre. nunca morei no morumbi ou embaixo da porra do elevado da artur.
me casei. e esses são o melhor que pude imaginar como votos de casamento.
sinceramente,
não sei.

sinto, em algum íntimo do meu ser, que charles bukowski revira no túmulo neste momento.
quer saber?
ao inferno com ele.



nota do autor:
levemente embriagado, nenhum pouco deprimido. sei lá que porra me levou a escrever tal texto numa só paulada. as únicas pausas dadas foram para corrigir os inúmeros erros cometidos, aqueles erros que só acontecem quando os dez dedos vão em tal velocidade que na verdade parecem 30. quem sabe amanhã, lendo tudo isso, eu não venha a apagar toda essa merda? até lá, me mantenho fiel ao narrador: caralho, "não sei".