domingo, 22 de março de 2009

sobre conversas noturnas

a história a seguir retrata, embora não tão profundamente quanto possa parecer, o momento em que pavio encontrou deus.

sabe aqueles momentos, logo antes de dormir, em que sua mente parece acelerar a 200 quilometros por hora e você simplesmente não consegue adormecer? então, pavio, nosso jovem anteriormente conhecido, transitava exatamente por esse misterioso mundo da mentes aceleradas. um olhar mais atento através da escuridão de seu quarto revelaria suas finas e pálidas canelas, que sempre ficavam para fora da cama - pavio devia medir mais de dois metros - inquietas embaixo das cobertas.

o que fazer nessas horas? você relaxa, tenta descontrair cada músculo de seu corpo, controlar a respiração, desfocar a mente de qualquer assunto em específico, mas isso dá tanto trabalho que, no final, você acaba ainda mais desperto do que antes. eu disse desperto, e não energizado, ou até mesmo acordado, como pavio estava. é como se cada um de tais procedimentos fosse inútil, e você acaba percebendo que, não importa o que faça, haverão duas forças que não podem ser controladas: seu coração e sua mente. e a última insiste em visitar cada situação do dia, semana, mês, ano, horas, minutos ou segundos. são faces e momentos que transitam a velocidades exorbitantes, de forma desconexa, incabível, impensável, intransitável, impossível. na verdade, possível apenas naqueles momentos que antecedem o adormecer.

mas já basta de divagações sobre tal instante. (divagações que, garanto-lhes, passaram todas pela cabeça do pobre pavio, não importando o quanto ele estivesse exausto) foi olhando para o quadro do "paquiderme comendo bambu", trazido por sua amada mãe em sua última visita, que pavio se deu conta dos leves e constantes ruídos vindos da janela de vidro em seu quarto. eram barulhos baixinhos, que lembravam aqueles que fazem pequenas pedras ao serem atiradas de encontro às janelas de amantes, com uma cadência que se assemelhava a sons produzidos por galhos de árvores embaladas pelo vento, perturbando o ser humano adormecido abrigado em seu quarto, que só cedem quando abrem-se as janelas ou quando tais galhos são arrancados à força por um pobre insône frustrado. foi com tal pensamento que pavio decidiu conhecer a origem dos ruídos.

ao abrir a janela, pavio deu de encontro com o maior grilo que já havia visto em sua vida. certamente, haveria de ter algo de errado com o inseto, uma mutação, o que fosse. o verde de seu exoesqueleto, iluminado pela lua cheia, lembrava aqueles usados em canetas marcatexto e o bicho devia medir quase 50 centímetros. o assombro deu lugar, brevemente, ao pânico, quando o animal invadiu seu quarto tão rapidamente que pavio apenas imaginou ter sido com um pulo, já que nem mesmo conseguiu observar o gigantesco grilo mover-se. antes que pudesse reagir, o grilo rezadeiro já se encontrava em sua cama. rezadeiro, pois suas patas dianteiras se uniam, como em uma espécie de louvor.

isso, burro, não é um grilo. é uma porcaria de um louvadeus.

"nunca mais", disse o louvadeus, como que em uma resposta à conclusão de pavio.

ficaram os dois ali, observando-se na escuridão do quarto de pavio, quarto esse que estava ocupado pelo jovem há menos de um ano, quando mudara-se para sua nova cidade, longe de família e amigos. havia sido um bom ano, concluiu pavio, apesar das mudanças. na verdade, pensava, havia sido um bom ano por causa das mudanças. cada experiência era uma nova experiência, tudo era novidade. lugares, situações, amigos. tudo novo. nada se encaixava ou se encaixaria em sua antiga vida, que ainda esperava por ele e por seu retorno, guardados naquele lugar onde ficam as antigas lembranças de um passado que se olha com carinho. há quem chame tal lugar de coração, mas pavio gostava de pensar diferente. não coração, alma. era lá onde guardava seu passado. mas isso tudo não mudava o fato de que havia um louvadeus em sua cama, encarando-o em silêncio após proferir as poescas palavras. um cigarro depois, o clima misturado com fumaça que habitava o espaço entre jovem e inseto era quase tangível o suficiente para ser cortado com uma faca, cortado então pelas palavras do animal.

"apenas brincando. achei que ia ser legal começar assim, todo corvo. nunca mais. pffft. nunca entendi aquela porra de conto. quer dizer que corvos só sabem falar aquilo? vou te dizer uma coisa, se há uma coisa que eu sei, é que corvos são animais muito falantes. isso é, logo antes de te devorar. 'você sabia que ontem eu peguei aquela galinha que tava dando sopa e...' ZÁZ, sua vida acaba antes que possa perceber. perdi muito amigos assim. 'nunca mais'... acho que nunca é uma palavra que não consta em seu vocabulário..."

era verdade, então. aquele louvadeus realmente estava ali, em sua cama, após forçar sua entrada pela janela, falando com ele. não parecia se importar muito pelas horas avançadas da madrugada, ou pela fumaça do cigarro já apagado de pavio, ou até mesmo pelo vento gelado que entrava por sua janela, ou, certamente, pelo fato de que louvadeus não fala.

"tudo bem, um louvadeus não fala mesmo. são animais calados por natureza. quero dizer, todos os animais são calados por natureza, exceto pelos humanos, os quais achei por bem incentivar o dom da fala. achei que, talvez, caísse bem com sua suposta inteligência. por que me olhas com essa expressão de espanto? 'criei'? sim. criei, diabos! ou você é desses metidos a espertinho que acreditam naquela baboseira de evolucionismo? merda, construo a existência em seis dias, SEIS DIAS, e vem um branquelo metido a esperto e dá créditos à maldita natureza, aquela putinha... como se fosse difícil fazer tudo isso em MILHÕES DE ANOS. vou te dizer uma coisa, me dê só meio milhão e você verá o que eu construo com isso... evolucionismo... de qualquer forma, me desvio do assunto. prazer, jovem pavio. eu sou deus."

era o que faltava, um louvadeus com mania de grandeza.

"vai ficar aí quieto, porra? você tá aí, sentado no meio da noite, com a porra de DEUS no seu quarto, na sua cama, e vai ficar quieto? e eu falei que esse negócio de inteligência era algo superestimado... olha as formigas, por exemplo, burras feito uma porta, mas dão conta do recado. carregam animais cinco vezes o seu tamanho, abrem caminhos que os humanos levariam anos para abrir e não precisam construir arranha-céus para isso. na verdade, uma vez conheci uma que tava meio decidida a ser arquiteta, mas nós logo sabíamos que isso só podia dar errado e..."

e como falava, o filho-da-putinha! talvez fosse mesmo mais fácil pavio simplesmente dar uma sapatada nele e voltar a tentar dormir. mas isso faria uma puta de uma sujeira, o bicho estava bem no meio de sua cama. talvez pavio devesse ir dormir na sala, deixando o animal falando sozinho. mas isso seria de uma tremenda grosseria e se havia algo que pavio não era, era mal-educado. pois bem, por ora, iria responder aos caprichos do animal "divino".

"epa, nunca falei que era divino, ô grandalhão. isso soa meio gay. não que haja qualquer coisa de errado em ser gay, amo todas as minhas criações da mesma forma, apesar de que isso soa meio gay, também."

pavio se perguntava agora como o animal sabia o que havia pensado. cacete, aquela era uma noite estranha. ele gostaria de ter um do verde para espairecer um pouco ou, quem sabe, esquecer muito. quem diria, deus preocupa-se com sua masculinidade.

"pode ter certeza que eu me preocupo com minha masculinidade. não nos preocupamos todos? quero dizer, mesmo as mulheres se preocupam com sua masculinidade, por que não haveríamos nós de fazer o mesmo? enfim, talvez estejamos nos desviando da tarefa à mão. vim aqui esta noite, pois você tem o direito a fazer uma pergunta a deus, meu jovem. mas não enrole e..."

uma pergunta, então? pavio, como todo bom jovem na casa de seus vinte anos, tinha muitas perguntas. sobre tudo, sobre qualquer coisa. talvez não tantas quanto crianças de três a sete anos, fase de nossas vidas em que tudo é uma enorme marca de interrogação, mas pavio certamente tinha muitas dúvidas. o engraçado era que, logo agora, nada lhe vinha à mente. o inseto começava a olhar impaciente. tudo bem, foda-se, tudo não devia passar de um sonho mesmo... "qual o sent..."

"...e não me venha com aquela baboseira clichezinha de merda de 'ai, senhor meu deus, qual o sentido da vida?' que eu não to com saco pra essa porra sentimentalóide hoje. a verdadeira questão, meu jovem pavio, é a questão em si. como eu vi em um filme, certa vez, uma boa resposta não é uma boa resposta sem uma boa pergunta por trás dela. 'e o que é uma boa pergunta?' questionava um dos estudantes que assistia à aula fictícia na película. 'essa é uma boa pergunta.', respondia o professor, triunfante. 'então, qual a boa resposta?', 'a minha', ainda mais triunfante, tambores, aplausos, risos e regojizos. todo mundo fica feliz. era um bom filme, se não me engano, mas não consigo me recordar o nome. eu sei, eu sei, não é fácil ser onisciente. na verdade, enche o saco tanta coisa na cabeça da gente. você acha que tem dificuldades para dormir? devia ver o meu cérebro quando deito na cama...

"e aqui vou eu, saindo do eixo, novamente. enfim, caro pavio, lembre-se que tens apenas uma pergunta a ser feita e eu, cercado de toda a minha sabedoria infinita, tentarei responder da melhor forma possível. não há pressão. se a sua pergunta for qual a hora em bangkoc neste momento, eu responderei. devo dizer que será um tempo muito mal aproveitado, para você e para mim, e provavelmente nunca nos veremos novamente depois disso, mas eu responderei. pegue todas as suas dúvidas, todas as suas incertezas, aquelas que habitam os lugares mais empoeirados de sua mente, os cantos mais escuros de sua alma, o lugar mais apertado de seu coração, e busque algo que possa definir sua vida. acredite em mim, você não vai querer olhar para trás um dia e, ao se lembrar deste momento, ficar com vergonha da pergunta. eu sei disso, já não comentei que sou onisciente?"

e com isso pavio virou do avesso. afundou-se em si mesmo buscando todas aquelas imagens que transitavam em sua mente minutos antes. imagens que o próprio pavio não tinha muita certeza de que se tratavam. lembrou-se da visita de sua mãe e de seu irmão menor, no mês anterior, e de como tinha sido difícil deixa-los partir novamente, e de como deveria ter sido difícil para eles deixarem-no ir, também. visitou o momento em que, anos antes, havia negado o amor que queimara em seu peito; ele gostava de acreditar que havia sido pelo bem dos dois, mas não podia deixar de imaginar se não teria sido apenas egoísmo. caminhou pelas vielas da cidade onde seu pai morava, um homem que já não era mais tanto seu pai, mas que ainda era venerado pelos eternos olhos de criança que dominam a todos nós quando olhamos nossos pais. observou decisões difíceis, escolhas cobertas de alegria, despedidas com lágrimas ou abraços, brigas armadas de palavras ou de punhos. sentiu cada dor que era possível sentir e o gosto de sangue que as acampanha, sejam nas costelas ou na alma.

"por que tudo o que vale a pena ser lembrado e guardado é acompanhado de dificuldades, incertezas ou dor?", finalmente perguntou.

"agora essa é a verdadeira boa pergunta. porque, senão, como saberíamos que elas merecem ser lembradas e guardadas? melhor ainda, que graça teriam elas?"

pavio então conseguiu lentamente deslizar para o adormecer, deitado em sua cama, como sempre estivera. no entanto, observando-se atentamente pela escuridão de seu quarto, através das cortinas e da janela, um olho mais experiente encontraria, em meio à folhagem, um pequeno grande inseto cor de jade.

3 comentários:

V L O disse...

desculpa, não li tudo, grande demais pra minha limitada capacidade intelectual.

Paulinha disse...

"por que tudo o que vale a pena ser lembrado e guardado é acompanhado de dificuldades, incertezas ou dor?"

tô pra descobrir e pesar o que eu quero de fato guardar.

Gabriela disse...

"porque, senão, como saberíamos que elas merecem ser lembradas e guardadas? melhor ainda, que graça teriam elas?"

que graça?

ainda me surpreendo toda vez que leio teus textos, pai. este ficou fantástico, mesmo. absurdamente bom.

orgulho, ok.

beijo, saudades.