domingo, 9 de novembro de 2008

sobre o último minuto

você abre os olhos e só vê branco. a lembrança de um romance de saramago passa brevemente pela sua cabeça. no entanto, você não está cego, acometido pela cegueira branca. está, sim, em um pálido quarto de hospital, como pode ser percebido pela aparelhagem característica e a famosa máquina que emite "beep".

sua respiração está mais pesada do que o costume. puxar o ar para dentro dos pulmões prova-se algo extremamente complicado. é difícil raciocinar. tubos saem de seus braços, ligados a bolsas com líquidos transparentes penduradas ao lado da cama.

sua cabeça roda, parece pesar 30 kilos. o branco dos lençóis se mistura com o bege claro das paredes e o cinza da televisão. uma mulher entra e mexe nos tubos. sai antes que você possa perguntá-la o que faz ali, o que está acontecendo. aliás, você percebe que não consegue falar, dói demais.

falando em dor, agulhas penetram lentamente seu peito, espalhando-se por suas costas, ao longo de toda coluna. não é a melhor sensação do mundo. talvez até se assemelhe ao que você imagina ser a morte ou o inferno. felizmente, a agonia passa, tão logo você desiste de mover qualquer parte do corpo. agora já sabe: até mesmo o mindinho pode funcionar como gatilho para dor tão profunda. parece uma boa idéia permanecer imóvel.

a imobilidade é seu santuário de calma e paz, mas isso ainda não responde o que raios está fazendo naquele quarto de hospital. algo no fundo de sua mente lhe diz que, de alguma forma, você sabe a resposta para tal pergunta, porém esta está guardada em um lugar distante o suficiente para que suas mãos não possam alcançá-la. cansa pensar muito a respeito e, se há algo de que você tem certeza, é de estar profundamente, completamente, exaurido de qualquer energia.

sua cabeça ainda pesa os 30 kilos, e só então percebe o travesseiro macio e fofo com leve cheiro de hortelã com detergente na qual está depositada.

a agonia volta. dessa vez, não é a dor que a ativa, mas a falta de motivos, dos por quês de estar ali, preso àquela cama e aos tubos.

lentamente, as memórias começam a pipocar em sua cabeça, como não poderia deixar de ser. estranha e tortuosa é a psique humana. às vezes falha com o homem, exita em funcionar e exercitar os propósitos pelos quais existe. contudo, há os momentos em que decide lhes fornecer pequenas pistas a respeito do que acontece à sua volta, mesmo que, na maioria das vezes, não façam idéia.

você então vislumbra os vultos dos fantasmas que estiveram ali, naquele mesmo quarto, chorando e aguardando por boas novas. uma mulher com camisa rosa claro, cabelo castanho e olhos azuis cheio de lágrimas. ela olha para a sua figura fraca e doentia na cama e seu desespero é verdadeiro e profundo. você gostaria de poder acalentá-la, dar garantias de que tudo ficará bem, mas não tem poder para tanto. o simples fato de continuar vivo já é um fardo grande demais.

crianças entram correndo pela porta. a mulher olha para elas com ternura e tristeza. a mais nova delas, uma menina loira com sardas pela face, brinca com as flores depositadas em um vaso sobre a mesinha ao lado do seu leito. ela não parece saber muito o que significa sua estadia ali. o mais velho, no entanto, exibe os olhos marejados e procura desviar o olhar de onde você está deitado. a dor da consciência de sua tristeza é maior do que a das agulhas, e você chega a desejar que ele não estivesse ali para vê-lo naquele estado. infelizmente, não há nada que você possa fazer. não há nada que você possa fazer há muito tempo, aliás.

os três, entes querido de uma vida há muito passada, se movem como espíritos etéreos, cujo lugar é qualquer um, exceto aquele pálido quarto de hospital. eles deviam estar mundo afora, procurando seus próprios destinos, e não sofrendo por um moribundo sem a menor perspectiva de poder sorrir, cantar ou dançar novamente.

a onda de luz que inunda suas dúvidas neste momento é mais intensa do que a experiência de olhar para um eclipse solar sem qualquer proteção. a cegueira vem de verdade dessa vez, vindo, no entanto, como uma cegueira que lhe abre os olhos para a verdade. você vê, pela primeira vez. vê o médico, com seu jaleco branco e óculos de lentes grossas determinando, com poucas palavras, o fim de seu caminho, de sua vida. na verdade, ele não necessitaria de mais de uma palavra para tal. câncer. terminal. não há nada que possamos fazer. sinto muito.

você gostaria de chorar neste momento. aliás, se já houve algum momento perfeito para as lágrimas desde a criação do mundo, seria este. você quer chorar e seus olhos permanecem secos. nenhuma gota desce por sua face, não importa o tamanho da dor que tome conta de seu coração. a tristeza é tão profunda que seria egoísta não fosse um detalhe: márcia.

você se lembra do nome dela, afinal. consegue até se lembrar daquela pequena lanchonete no interior em que estava no dia em que a conheceu. recorda-se do gosto do café, do cheiro das flores sobre a mesa, da aparência mal-encarada da garçonete rude que o atendeu. a luz do sol que invadiu o ambiente quando a porta dupla foi aberta por márcia era suficiente para queimar levemente sua íris, mas sua beleza o impediu. aquele era o momento de uma vida inteira juntos.

para seu espanto, alguém aperta sua mão, ali, naquele quarto de hospital. a cabeça está caída sobre o braço esquerdo, depositado a seu lado na cama. os cabelos começam a clarear e há um quê de derrota naquela cena. você sente sua perna úmida e salgada por um choro de dias. ela nunca saíra dali, nunca deixara de rezar e rogar por melhoras, mas a esperança se esvaía.

algo então acontece dentro de sua doença, de seu estado, de toda a dor causada pelo tumor instalado em seu peito. você o sente regredindo, perdendo força, desistindo de derrotá-lo, até que, finalmente, ele se retira. você se sente completo novamente. poderia se levantar neste exato momento, agarrar aquela mulher que nunca desistira de ti e dar-lhe um beijo que poderia, nos livros, até mesmo ser chamado de "beijo da vida". você está pronto para mim.

eu saio das sombras. poderia ser de trás da cortina, de debaixo da cama, ou de dentro do guarda-roupas. você sente um novo aperto, dessa vez no ombro, autoria de minha esquálida mão. com seus olhos, você procura sua amada, sua mulher e companheira, mesmo sabendo que, em seu sono, ela não poderia ter chamado sua atenção de tal forma. sempre admirei isso nos homens. como, mesmo nas situações mais impossíveis, procuram força e esperança em sentimentos intangíveis como o amor.

finalmente, você me localiza e, pela primeira vez, o olhar que vejo não é de terror ou espanto, e sim da mais profunda aceitação pelo que viria a acontecer. você certamente foi um ser humano admirável. não tentou barganhar, implorar ou subornar. simplesmente pediu mais um minuto para se despedir. de pé novamente, depois de meses naquela cama, você calmamente inclinou-se e beijou ternamente a testa daquela que ainda demoraria anos para me conhecer.

juntos, deixamos aquele pálido quarto de hotel. meu trabalho estava feito e você teria toda uma nova vida pela frente. nada mudou no seu antigo mundo, só a máquina, que passou a emitir um longo e fulminante "beep".

2 comentários:

Anônimo disse...

quase chorei.
juro.
não, não estou sendo irônica.

Paulinha disse...

só tive tempo de ler agora...
tô de cara...qdo tiver palavras volto para comentar.