terça-feira, 29 de abril de 2008

sobre asdrúbal e o violino

a história de asdrúbal terminou no dia 17 de março de 1994. para ser mais exato, os médicos legistas registraram sua hora de óbito às três horas, 46 minutos e 27 segundos da madrugada, o que, por si só, era um engano. o relógio musical do responsável pela marcação estava cinco segundos atrasados, devido à uma música que tocava, todo dia, ao meio-dia e o alterava em nanossegundos.
sua vida - a de asdrúbal, não a do relógio - era uma longa sucessão de enganos musicais.
duas semanas antes, ele havia sido desqualificado de um concurso público por assoviar Chopin durante a prova. o monitor, um antigo regente da orquestra sinfônica de taubaté, assegurava que ele havia colocado um dó no lugar de um sol, expulsando-o da classe. ele apenas tentara segurar uma tosse que lhe acometera durante a canção, perdendo o tom por alguns segundos. com isso, asdrúbal continuava desempregado.
certa vez, por volta de 30 dias antes de falecer, ele havia cedido à pressão de uma amiga e decidira aceitar o encontro às escuras que ela lhe arranjara. chegando ao local marcado, o bar Jobim, asdrúbal passou a cortejar seu par, pensando em como havia errado em pensar que a amiga não teria bom gosto. se havia estado enganado em muitas coisas ao longo de sua vida, naquela vez estava certo. aquela não era sua prometida. na verdade, a escolhida estava sentada do outro lado do bar, próxima aos toaletes e ao cheiro de empadinhas, cantarolando incessantemente Chico, o sinal combinado para que se reconhecessem, e acabaria indo embora após uma hora de espera prometendo a si mesma nunca mais aceitar sair com alguém com um nome tão patético quanto asdrúbal. no entanto, o engano dele deu frutos, já que, naquela noite, não voltou sozinho para casa.
o nome dela era marina, uma morena apaixonante que cantarolava Caetano. bem, o forte de asdrúbal nunca fora a música popular brasileira, e isso lhe valeu uma namorada.
o nascimento de asdrúbal também fora uma incertidão. passara a vida toda pensando ser filho de seu fabinho, um pobre artesão de instrumentos musicais, mas era na verdade filho do vizinho, que aproveitava as muitas horas passadas por fábio na oficina para ir dançar a macarena na horizontal em sua casa.

enquanto asdrúbal era concebido, seu fabinho construía o violino. feito em madeira nobre, o instrumento fora encomendado por barão, um músico abastado das redondezas que reconhecia o talento do artesão com as cordas.
o violino tinha um estojo. feito em coro e revestido internamente por um veludo avermelhado, parecia aqueles usados pelos gângsteres dos filmes para guardar seu armamento. entalhado nele estava "13-06-36", a data em que ficara pronto. seu fabinho realmente estava orgulhoso de seu trabalho.
e com motivo, o instrumento era magnífico. dele sairiam notas que não eram crédito de quem o portasse, mas sim de seu criador e de suas formas.
mesmo assim, barão não obteve sucesso, com o violino ou sem ele. frustrado por saber que carregava a culpa pelo próprio fracasso, descontou sua raiva no pobre objeto inanimado que se recusava a casar com suas habilidades. aquele não era um violino qualquer, teria de ser portado por quem tivesse braço para domá-lo. e assim barão se vingou, privando-o do que nascera para realizar, para fazer, para ser. nos anos seguintes, todos que passavam pela casa de barão não podiam deixar de notar aquele estojo empoeirado guardado sob a escada, parecendo clamar por uma chance de ser ouvido.
e o silêncio perduraria eternamente, não fosse o sobrinho do barão achá-lo, dez anos depois, enquanto limpava a casa do tio recém-falecido. músico em início de carreira e herdeiro de todas as posses do barão, se empenhou em consertar aquele belo objeto esquecido.
de volta ao seu esplendor, o violino tratou de recompensar seu benfeitor. recompensou-o tanto que seu dono não se viu capaz de acompanhá-lo. sabia que as notas produzidas não eram suas e esperava um dia vê-lo no máximo de suas capacidades. com isso, tratou de passar o instrumento adiante.
com o correr dos anos, o objeto de orgulho de seu fabinho, construído nos anos 30, passou por diversas mãos.
foi tocado pelo 4º violinista da sinfônica da cidade de são paulo; acompanhou um show de baião no agreste do sertão do nordeste que virou mar; regeu um conjunto de cordas que cruzou a américa; viu bailes de carnaval virarem celebrações fúnebres; atraiu as massas a teatros municipais e poucas pessoas a recitais de poesia; até que, assim quis o destino, fosse parar no bar jobim, vendo a namorada de seu dono saindo pela porta com outro, enquanto fazia o que fora feito para fazer.
no mês seguinte, cada vez que era manuseado pelo músico, sentia no apertar das cordas toda a mágoa do indivíduo abandonado. o tempo passou e podia prever uma tragédia, tragédia que não tardaria, pois ouvia as emoções do dono, e este conversava com o instrumento, como que pedindo por conselhos de algo que já vira muito, já passara por tanto. infelizmente, não podia responder, não por outro meio que não sua música. e isso, ele já sabia, não seria suficiente para saciar a maldade que crescia naquele que o empunhava.
o violino então foi banhado de sangue. na beira da lagoa de guanabara, iluminado pelas luzes reluzentes dos postes, durante a madrugada do dia 17 de março de 1994.
seu dono, abominado pelo que fizera, saíra correndo, encoberto pelas sombras.
marina, a morena apaixonante que havia conquistado o coração de asdrúbal, gritava por socorro. mas já era tarde, para ele e o violino.
asdrúbal deixava de ser humano para virar estatística. o violino largava a vida de instrumento para virar prova.

e, naquele momento, acabaram-se suas histórias, seus ensaios.

ensaios sobre asdrúbal e o violino.

2 comentários:

Revista Croma disse...

Salve Soto - belo achado esse teu blog por aqui, muito bom mesmo!

Hum, as trajetórias de criadores e criaturas. Muito interessante onde esse tipo de relação pode levar - principalmente quando se trata de música, com uma pitada de ironia e cotidiano.

Continue assim, meu caro - muito bom.
Abraço!

Lu disse...

Muito bom, hein?
Peraí, será que eu tô no curso certo, ou tu realemnte é precoce em todos os sentidos?
hahaha
Juro, tu escreve demais!
beijo!