segunda-feira, 19 de outubro de 2009

sobre o som que habita o silêncio

fiquei observando-o ali, sentado no fundo do ônibus, aparentemente imóvel. apenas um olhar mais atento para perceber que seu coma era uma farsa. os dedos se moviam sutil e lentamente, acompanhando o ritmo da música que era emitida por seus fones de ouvido.

desde a primeira vez que saíra de casa com as próprias pernas, tinha sempre posicionado em sua cabeça o par de aparelhos auriculares. ganhara um walkman de seu pai ao completar três anos, com uma fita cassete da dupla sandy & júnior. não conseguia desgrudar do aparelho. ia à escola, ao treino de futebol nas manhãs dos sábados, ao supermercado com sua mãe, invariavelmente com os fones ligados.

assim, crescera. e, mesmo que o aparelho mudasse (de um walkman para um moderno Ipod) e a música nele contida (os filhos de xororó, ou chitãozinho, sei lá, não mais lhe apeteciam, como era de se esperar) o cenário era o mesmo. enquanto estivesse em movimento, nas ruas ou em lugares fechados, tinha seus companheiros sonoros conectados quase diretamente a seu próprio cérebro. já virara uma rotina. ao sair de casa pegava carteira com documentos e dinheiro, relógio, chaves e sua música.

ao contrário do que poderia se supor, tinha uma vida normal. o colégio, vivia sempre rodeado de amigos. conhecera sua parte de interesses amorosos. a preocupação inicial dos pais, que viam o filho se desligar do mundo ao sair de casa, passara com os relatos de diretoras e professores de que seu filho nutria uma relação social saudável - até mesmo invejável - com as pessoas ao seu redor. claro que o fato de que, em muitas vezes, os fones estarem posicionados em suas orelhas até durante as aulas causou certa apreensão, mas suas notas não apresentavam motivos para suspeitas.

sem maiores contratempos teria sido sua vida até aquele momento em que eu o observava no ônibus. o forte transe que o mantinha desligado do mundo por mais de vinte minutos pareceu cessar de súbito. de repente, aquele jovem e tranquilo garoto, mais novo do que eu por não mais do que quatro anos, apresentava uma exasperante inquietação. inicialmente, procurou manter a calma, examinando minuciosamente seu aparelho de armazenamento musical. sem encontrar respostas satisfatórias, passou a investigar seus antigos companheiros, os fones. quem o observasse naquele momento podia perceber, estampada em sua cara, que suas suspeitas se confirmavam: estavam quebrados, algo no fio, provavelmente. sua angústia era aparente, mas não havia nada que pudesse fazer ali, naquele momento. então, após praguejar e soltar algumas palavras de baixo calão por alguns segundos, finalmente pareceu resignar-se a completar aquela viagem em um silêncio desconhecido por anos.

o problema maior, no entanto, não era o silêncio. na verdade, o silêncio nem ao menos existia. subitamente, sua mente era inundada por vozes desordenadas e confusas, que gritavam milhares de sentenças por segundo. vozes que não pertenciam a terceiros, sentados nos bancos ao redor ou de pé no corredor, mas sim a seus próprios pensamentos. pela primeira vez em sua vida como ser humano pensante e inteligente aquele jovem se via obrigado a conviver consigo mesmo, pela primeira vez se deparava verdadeiramente com sua própria vida.

o jovem poderia ter experimentado um período sem música, sem fones, apenas com seus pensamentos. em uma semana, já teria vivido mais do que o resto de sua vida inteira, imerso em ciclos de pensamentos que nunca havia aprendido a organizar, soterrado por seus próprios erros e acertos, atacado constantemente pelas palavras que nunca dissera, pelas brigas que não havia tido. ele poderia, mas, se tivesse de apostar, diria que não foi isso que aconteceu.

chegando em casa, depois de se deparar com uma vida inteira que tinha pela frente, o rapaz chegou a conclusão que teria de fazer o que fosse necessário para que aquela situação nunca mais acontecesse. como poderia ter chegado até aquele momento sem nunca ter se confrontado daquela forma?

no dia seguinte, comprou novos fones de ouvido. novos e vários. tantos, para nunca tivesse que passar por aquilo novamente.

Um comentário:

V L O disse...

odeio quando o fone estraga, sou obrigada a fazer parte do mundo.